Moça, cultive o seu individualismo
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Ligia* me mandou uma mensagem no whatsapp essa semana dizendo que sua estadia em São Paulo seria breve e, portanto, não poderia me encontrar. Entristeci, porque Ligia é minha melhor amiga desde os 5 anos de idade e, como mora em outra cidade, nossos encontros são raros e espaçados. Mas compreendi. Ligia sempre foi uma mulher guerreira, mesmo quando mal sabia soletrar o abecedário. Lembro-me que nosso primeiro diálogo aconteceu nos primeiros dias da 1ª série, quando eu brinquei com algumas de suas barbies de um jeito meio irresponsável e ela apenas me olhou, colocou as mãos na cintura e disse, bem alto: “ei, essas barbies são minhas”. Ela, tão pequena, com aqueles cabelos cacheados esvoaçantes e tom de voz autoritário parecia tão enorme, tão forte e tão assustadora, que logo devolvi suas bonecas. Lembro de ter pensado: “que patricinha, se achando com as essas barbies todas” - expressão que tinha aprendido recentemente com a minha irmã, que na época estava na 8ª série. Depois, recordo a primeira vez que fui na casa de Ligia e descobri que de patricinha ela não tinha nada. Ela morava num apartamento caro na zona oeste de São Paulo, porém, na casa do zelador, seu pai. Sua mãe, que estava grávida, era quem me oferecia bolos deliciosos, que eu recebia sem muito ânimo, pois nunca fui fã de doces. Certa vez, sua mãe fez pães de queijo e eu nunca mais sai da casa de Ligia. A essa altura, dividíamos barbies, sonhos, brincadeiras e descobertas. Mal sabíamos que ali começava uma amizade sólida e duradoura.
Quando eu já cursava jornalismo na faculdade, Ligia me contou que havia passado na fuvest, mas que estudaria em Ribeirão Preto e foi aí que nossa distância começou. Comemoramos muito, até o momento do abraço forte e de desejar boa sorte. Alguns anos depois, algumas baladas a cada três ou quatro meses, e histórias mais contadas que compartilhadas, Ligia apareceu me dizendo que iria para Europa estudar. Na despedida, ela chorava, mas eu não conseguia soltar uma lágrima — apesar de ser extremamente chorona — , talvez porquê eu não acreditava que ela iria embora outra vez e, agora, para mais longe. Foram seis meses conversando pelo skype, com ela me narrando experiências absurdas de machismo e outras tantas engraçadas que ela vivenciou. Por lá, ela conheceu até o Coliseu, enquanto eu mudava para publicidade e batia a cara num relacionamento abusivo. Eu comemorava cada vitória sua, torcendo pelo momento que nos reuniríamos novamente e faríamos uma festa, como aquelas, que costumávamos fazer e frequentar na adolescência. Não fizemos, mas não deixamos de nos divertir muito, gargalhar muito, conhecer pessoas novas, conversar até de madrugada e chorar algumas vezes juntas.
Eu costumo dizer que Ligia é minha alma gêmea — mesmo não acreditando nesse conceito — , pois ela me entende como ninguém e, não importa o tempo que passamos longe, nossa consideração e amor não mudam. É aquela pessoa que você observa e já saca o que ela está pensando, sabe? E vice-versa. Isso não quer dizer que não mudamos, já decepcionei ela algumas vezes e ela já me fez sentir muitas saudades, mas nossa história é tão extensa que, apesar da vida ter nos levado a rumos tão diferentes, nossas complexidades e cumplicidades sempre se encontram.
Depois dessa rápida conversa com Ligia, percebi que muitos sentimentos por pessoas queridas também não mudam, mesmo aquelas com quem não tenho mais de vinte anos de amizade. Conversei com vários amigos nas últimas semanas, pessoas que são muito próximas — talvez nem tanto fisicamente — , outras mais distantes, e até pessoas que não vejo há anos e que fico meses sem falar. Muitas me procuraram, outras, eu vi uma foto recente e fui puxar papo ou acabei encontrando em algum lugar, o que faz parecer o ato de colocar a conversa em dia uma atividade interminável e cheia de surpresas. Assim, percebi que não foi apenas eu que acabei caminhando para outras direções, mas que as pessoas não param de ir e vir, e algumas realmente voltam.
Eu lembro que quando era mais nova, começava um relacionamento e sumia do rolê. Imatura e volúvel. E era tão intensa em tudo que fazia que não conseguia fazer mais coisas ao mesmo tempo e, claro, acabava esquecendo de coisas que eu necessitava. Como estar com os amigos — sem namorados — , por exemplo. Não sei se foi só o papel do feminismo na minha vida que me fez perceber que eu sou completa, ou se foi por conta das experiências frustradas em lidar com namorados que não conseguiam entender isso — volta à tecla dos relacionamentos abusivos — , ou mesmo se foram as responsas da vida gritando: "pare!". Eu não digo que a gente tem que ter uma visão utilitarista das pessoas, mas que a gente saiba aproveitar o tempo delas e respeitá-lo da mesma maneira que se usufrui. E se coloque à disposição em troca.
Lembro que, desde sempre, fui aquela pessoa que conversava muito, o tempo todo, com muitas pessoas, mas que em algum momento precisava ficar quieta. Hoje, eu entendo que é a minha individualidade precisando de espaço. Algumas pessoas realmente não querem ou não gostam de ficar consigo mesmas, outras fogem de qualquer situação em que tenham que ficar só. Eu não sou uma delas. Hoje, eu moro sozinha há três anos. Não é muito tempo se pensar bem, mas, foi um dos motivos que me fez crescer — bem na marra. Quando resolvi sair da casa dos meus pais, sabia que seria uma decisão difícil. Tudo era também questão de privilégio. Eu ganhava razoavelmente suficiente, não vim de outra cidade, não tinha nenhuma treta com a minha família — que continuou morando em bairros vizinhos — , eu apenas precisava do meu espaço, onde eu poderia expressar a minha individualidade e me tornar independente — uma visão meio que distorcida disso, na época. Eu achava que minha vida seria regada a festas, a amigos o tempo todo aparecendo e coisas do tipo, que eu iria praticar yoga em casa, que iria estudar muito, mas descobri de um jeito difícil coisas como: se eu largar esse objeto aqui, ele vai continuar aqui; se eu bagunçar essa merda de roupa, eu que vou ter que lidar com isso em algum momento, sem falar que essa pilha pode se transformar num monstro futuramente; contas de água, luz, internet e aluguel são o básico que furam o seu bolso todo mês, fora isso, tem mais uma porrada de coisa que pode aparecer e que vai te arrancar até do seu saldo negativo. A pior delas foi: se você perder o emprego, você vai se foder.
E, tudo bem.
Tudo bem porque as vezes a gente aprende assim mesmo. E assim a gente se levanta, pega nas mãos dos amiguinhos e fala: “só vamo”. E entende que individualidade é importante. Ter seu espaço é importante, mas ele geralmente tem que ser conquistado. E que até a sua individualidade pode estar no momento em que você se sente plena ao lado de várias pessoas, ao lado dx namoradx, ou sozinha, em casa, agarrando seus gatos ou olhando para o teto, refletindo que porra você está fazendo da vida. O melhor disso tudo, é quando você encontra respostas viáveis. E, se não tiver, que tenha força para buscá-las e que saiba curtir a sua própria companhia sem confundi-la com solidão (isso é tema para outro texto).