O cheiro do ralo
Tem um cheiro no ralo que incomoda, há semanas, mas ninguém sabe exatamente o que é. Alguns próximos dizem que é um problema de encanamento e logo acreditamos que se trata de algo mais profundo. Como alguma questão passada mal resolvida que hoje vem à tona em forma de odor. É como quando alguém diz que se algo está fedendo é porque aí tem coisa.
Vamos investigar mais a fundo, entender o problema. Primeiro tentamos destampá-lo, sob a premissa de que, fazendo isso, encontraremos o que procuramos. Nada feito, continua cheirando. Vamos esquecer um pouco dele.
A vida chama.
Ao final do dia, chegamos em casa, cansados, daquele jeito que só um banho demorado pode aliviar. O ralo inunda revelando seu poder destrutivo. Agora está entupido.
Voltamos ao problema. Com menos paciência.
Chamamos um especialista na manhã seguinte. Vai dar tudo certo.
Ledo engano.
O especialista diz que é preciso desembolsar certa quantia a mais, pois é preciso mais ferramentas para tentar descobrir qual é o problema. Só abrir a tampa não vai resolver.
Menos dinheiro na conta. Um dia sem poder tomar banho. E o cheiro continua.
Esquecemos novamente do problema. A vida tem pressa. Trabalhamos até tarde, precisamos comer e tomar banho, mas aqui não poderemos.
Temos que recorrer ao banheiro alheio. Sabonete que não faz espuma. Toalha estendida em lavanderia de apartamento. Não nos sentimos limpos.
Mais dinheiro gasto.
Dia seguinte. Voltamos ao banheiro confiando que o especialista vai, finalmente, resolver o problema do ralo.
Nada feito. É preciso falar com o proprietário do apartamento. Ou seria com o zelador? Ou o síndico? Ou a imobiliária?
Por que não temos um imóvel próprio? Por que não moramos em uma casa? Por que não temos dinheiro sobrando?
Alguém responde. Aos berros. Mais estresse. Perdemos o controle.
Vamos tentar, novamente, resolver o problema e, agora, é para solucionar de vez e, provavelmente, sair deste lugar insuportável, com vizinhos barulhentos, pessoas rudes, casa que não funciona, gelada, mofada, repleta de problemas de estrutura. Como odiamos este lugar!
O dono parece nos perseguir, estamos sendo constantemente observados. Paranoia ou cuidado? Insegurança ou desconforto? Estamos enlouquecendo.
Outra noite em claro. E o ralo continua cheirando.
Mais uma tentativa. Vamos comprar um instrumento que, segundo vídeos de youtube e recomendação de próximos, vai funcionar.
Menos saldo no banco. Mais suor, e nervoso. Mais sentimentos de fracasso, mais desejos de mudanças se fortalecendo.
Problema resolvido. Ralo desentupido. Mas, ainda cheirando.
Lembramos que, na verdade, o cheiro sempre esteve ali, mas ninguém se importava muito com ele. Os tempos eram outros.
Chamamos a imobiliária. A casa não tem conserto. Vamos reincidir o contrato.
Ainda não deu o prazo. Tem multa.
Vamos fazer um empréstimo no banco. Menos dinheiro, mas menos dores de cabeça. Não queremos enxaqueca, muito menos, um colapso.
Nosso limite é baixo. Não queremos pedir emprestado. Nosso salário não paga os gastos. O que nos resta a fazer?
Vamos esquecer de novo? Talvez possamos esperar mais um pouco. Talvez, até o final do contrato…
NÃO!
Não, não aguentamos mais. É um pesadelo continuar aqui. É assumir atestado de loucura. Esta casa tem uma energia pesada. O dono é um cavalo. Nos sentimos desconfortáveis. Nem dormir bem é possível. Talvez nunca tenha sido.
Algo está morto naquele ralo.
Vamos mudar. Mudar é bom. Mudar faz bem. Precisamos de movimento.
Talvez, seja preciso retroceder um pouco, mas existe a esperança de uma melhora. Talvez, em alguns meses as coisas transcendam. Vamos acreditar nisso, por favor? É um suplício. É a catarse que tanto buscamos.
Precisamos de uma mudança, certo. Vamos.
Mas… quando vamos encontrar um lugar melhor para viver? Teremos energia para procurar? Teremos tempo e disposição para isso?
Sim. Teremos.
Talvez, precisamos de um aumento. Quando teremos uma promoção?
Não sabemos. Talvez, demore anos.
Então, temos que mudar de trabalho também.
Talvez, tenhamos que mudar a vida toda em questão de semanas. Não queremos mais outro ralo que cheira. Não queremos mais nos sentir mal em ambientes que deveriam trazer conforto. Não queremos mais aceitar uma situação opressiva. Precisamos mudar de vida.
Mudar dá trabalho.
Sim, mas é preciso.