Ser vítima, ser mulher (meu relato de assédio sexual)
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Um tema de conversa recorrente na vida é assédio sexual. Continua sendo. Infelizmente. Numa noite passada ao lado de uma amiga, em meio à música tranquila, taças cheias de vinho e cigarros de tabaco mal (ou bem, no caso dela) bolados, nosso assunto acabou sendo, como tantas vezes, os assédios que sofremos, recentemente ou não, nas nossas vidas, como eles nos marcam, como nos constrangeram, como lidamos (ou não) com eles, como cada um deles nos forçou a mudar alguma coisa dentro ou fora de nós.
Creio que a primeira etapa é encarar concretamente que uma situação é assédio. E é difícil, porque muitas vezes ele se dá de forma velada, no meio de brincadeiras, por um amigo, uma pessoa próxima e querida, um patrão ou alguém em uma posição social acima de você, entre palavras de afeto, manipulação e fingimento, e demoram para se revelarem constrangimento, agressão ou abuso físicos ou numa situação em que fica evidente que estamos sendo assediadas (para nós e para quem testemunhou).
A coisa mais detestável de ser assediada é estar no lugar de vítima. Quando se é uma mulher forte, guerreira e que luta por tudo na sua vida, parece que não combina este papel, porém, mesmo sendo assim, a gente não deixa de ser alvo e refém dos assédios de todos os dias, independente do lugar, do contexto ou da situação.
O que é assédio sexual?
Vamos começar contextualizando através da lei: assédio sexual é crime, MAS somente em contexto de trabalho. Em resumo, não há aparato legal quando somos assediadas em outros ambientes e situações.
No entanto, nossas primeiras experiências de assédio aconteceram bem antes de termos um emprego. Como mostram os dados da campanha #PrimeiroAssédio, criada pelo Think Olga em 2015, a idade média para sua ocorrência se inicia na faixa dos 9,7 anos entre as brasileiras — e grande parte dos crimes, 65%, são cometidos por conhecidos.
Em resumo, essa pequena introdução já evidencia porquê homens se sentirem livres para continuarem praticando assédio, pois, eles sabem que nada vai acontecer com eles, porque se naturalizou esse tipo de comportamento predatório, e quando vem em forma “carinhosa”, não se vê violência.
Para quem?
Voltando para o fato de que quando se sofre assédio, você automaticamente ocupa um lugar de vítima, e este lugar é horrível, você não cabe, porque não quer caber, então, você luta, só que muitas vezes a luta deixa de ser contra o seu assediador para se tornar uma luta contra o sistema e a sociedade e, por último, contra você mesma, que por muitas vezes pensou em desistir ou nem ter começado por saber e temer com o que iria lidar a partir do momento que resolvesse falar.
Meu breve relato
A última vez que aconteceu comigo, fui pega totalmente de surpresa, primeiro porque fazia muito tempo que isso não acontecia — excluindo os assédios de desconhecidos nas ruas (tenho uma crônica sobre um episódio desses aqui) — , porque estava num ambiente que deveria ser seguro, porque foi com alguém por quem tinha admiração e respeito e que estava estabelecendo um vínculo de amizade honesta e construtiva, pelo menos, para mim. Tudo isso me fez demorar muito para perceber que estava sendo assediada, constantemente, durante meses. E ter que explicar o porquê disso, repetidamente, foi mais uma das outras violências que sofri. Na verdade, quando tive coragem de contar a alguém, foi com meias palavras e como quem não queria acreditar na gravidade da situação a ponto de que quem me ouviu naquele momento também não ter identificado isso. Eu mesma passei pano pra situação. EU MESMA. E porquê a gente faz isso? Por que é tão fácil enxergar a violência de fora do que quando é você passando por isso? Cabem várias respostas aqui, mas vou me abster ao meu caso — coisa que só fui concluir, depois de muito refletir, relembrar, sessões de terapia, conversar e contar com apoio de amigos dentro e fora do contexto — que aqui vai ser retratado de forma abstrata, mas para entender, leve em conta que meu assediador é parte de um círculo social que ele já era conhecido e bem-quisto e eu estava adentrando recentemente.
Meu assediador me manipulou, não sei dizer quando isso começou, mas provavelmente logo quando começamos a ficar mais próximos. Ele me fez acreditar que ele tinha poder e que eu poderia contar com ele, dando a entender que se tratava de uma questão de confiança e criando uma espécie de ideia de onipresença que alimentava sua vaidade e sua necessidade de controle. Ou seja, ele se aproveitou de minha vulnerabilidade no momento para forçar esse laço. Eu estava chegando num lugar novo, apesar de na época conhecer algumas pessoas e de ter uma vaga e presunçosa ideia de como era, eu queria entender e queria muito contribuir, tinha fome para fazer parte como quem busca um novo sentido num dos piores momentos da vida. Eu estava fragilizada por vários motivos (isolamento social, recém-separação, doença, crise com trabalho, problemas constantes no imóvel que morava, ansiedade, PANDEMIA…) e ele me estendeu a mão naquele momento, por isso, confiei nele e sua amizade foi encarada por mim como uma extensão de acolhimento àquele lugar, onde eu sentia que finalmente estava me encontrando. Porém, não era só isso que ele queria, em pouquíssimo tempo, começou a mudar o tom de sua conversa comigo. Certa vez se disse apaixonado, mas que era algo fraternal — e eu realmente o via como um pai, devido a sua idade próxima do meu e pela atuação dele em alguns momentos, que oscilava entre amigo e uma conduta paternalista, de incentivar, explicar e advertir em algumas situações — então, acreditei, só não entendia a necessidade dele de falar tanto daquilo. Numa situação em que estávamos sozinhos, coisa que permiti por mera questão de confiança, ele voltou ao assunto da paixão, sendo que o motivo de nossa reunião estava longe de ser aquele, era para tratar de algo que provavelmente ele criou para se aproximar de mim. Nesse dia, ele insistia em mudar de assunto, querendo levar a conversa para o lado pessoal. Eu lembro que já estava um pouco desconfiada dele, mas não queria acreditar. De qualquer forma, lembro de ter colocado uma roupa que tampava meu corpo todo e o recebi com o cabelo completamente embaraçado como uma tentativa de defesa, para que ele não me achasse atraente. Também usei meu tom de voz mais “masculino”, abusando de gírias e mantendo muito distanciamento físico — coisa que a própria pandemia impôs e que pode ter me salvado de algo a mais que ele pudesse tentar. Ele ficou pouco tempo, mas suficiente para criar uma grande confusão quando falou sobre sua paixão que era fraternal e não sexual. Respondi que eu o tinha como amigo e tava tudo bem com isso, inclusive usei como tentativa de defesa contar que estava apaixonada por uma pessoa para ver se ao menos assim ele se tocava. Ele então, na mesma conversa, mudou de assunto e trouxe novamente essa questão assumindo que seu interesse também era sexual, inclusive disse: “eu não queria que você achasse que eu quero só te comer”. Fiquei em choque com essa declaração, mas logo respondi que não tinha nada a oferecer nesse sentido. Logo depois ele foi embora. Passei dias repensando tudo aquilo, discutindo com minha terapeuta e com poucos amigos que são muito próximos e acompanharam todo o desenrolar da coisa. Eu sentia uma confusão mental que envolvia uma mistura de nojo, raiva, decepção e também de negação. Não queria acreditar e não queria aceitar a gravidade daquilo tudo. Eu tentei ficar em silêncio, mas ele ficou me mandando mensagens, mais de uma vez por dia, insistindo em conversar qualquer coisa, usando de assuntos aleatórios para tentar chamar minha atenção, e eu fui ignorando o máximo que pude, mas ele continuou insistindo durante duas semanas mais ou menos. Até que um dia me ligou e eu não atendi. Tive que me segurar para não atender e ofendê-lo, pois essa era minha vontade tamanha a pressão que ele me colocou. Me sentia perseguida e sufocada. Nesse momento, também tive que lidar com o medo (é essa palavra mesmo) de como ele iria reagir à rejeição. Cheguei a passar noites em claro pensando na possibilidade de ter que sair de onde estava, de que teria que ir embora sem expor ou ter que lidar com o problema de frente. Mandei um texto com muito cuidado e respeito, mas ainda assim com uma posição clara e objetiva: era a segunda vez que eu dizia NÃO, para evitar esse sintoma por parte dele. Bem, foi a partir daí que comecei a engolir essa violência e passei o pano. Ele fingiu entender e se desculpou com desdém, disse que eu não havia entendido suas intenções. A errada era eu. Decidi ignorar e entrei num modo de distanciamento. Naquele momento eu não sabia dizer se ele realmente estava confuso ou queria confundir. Hoje tenho certeza da segunda hipótese. Foi então que ele passou a me tratar como se nada tivesse acontecido e eu entendi que talvez eu não precisasse desistir de tudo por causa desse episódio, foi um alívio momentâneo. Mesmo assim não conseguia ler como assédio, afinal, ele não “tentou nada físico”. O tempo foi passando e ele continuou agindo como amigo, forçando uma postura paternal e amigável, e eu cedi, porque acreditava que ele tinha entendido e não aconteceria de novo. Mas, aconteceu. Após meses do ocorrido, fomos para o bar com mais dois colegas de grupo. Era um dia quente e difícil para todos, então, merecíamos aquela cerveja, inclusive era a primeira vez que eu sentava em um bar depois de quase dois anos de pandemia. Dado certo momento, após várias doses de álcool, estávamos todos muito alegres, e ele me abraçou, na hora eu pensei que aquele contato físico era errado, mas acreditei que talvez ele não tivesse más intenções, em todo caso, logo me afastei. Pouco depois, ele voltou a me incomodar, fez piadas sobre meu estresse dizendo que “eu estava muito tensa e precisava transar”, em algum momento falou que eu era “um tesão” e ficou insistindo em debater o tal sentimento que ele tinha por mim, dizendo que ainda estava apaixonado, que havia passado, mas voltou naquele dia. Eu tentei fugir da conversa, desconversei, passei a prestar atenção no papo dos dois que estavam com a gente e pouco depois fomos todos embora. Mesmo sofrendo aquilo, num momento que deveria ser positivo para os envolvidos, ele fez novamente, inclusive, sem qualquer pudor para caso os demais pudessem escutar, e eu ainda o tratei com respeito, pois não queria me indispor e não queria acreditar que ele estava fazendo aquilo de novo. Era como se minha lente estivesse embaçada e eu não tivesse qualquer condição ou força para limpá-las. Naquele momento, eu não tinha percebido novamente a violência de seus atos e palavras, o assédio estava ali, dado, mas quando você sofre esse tipo de coisa, você é pega totalmente de surpresa — provavelmente alguém da área de psicologia, poderia explicar melhor esse tipo de sensação. Eu apenas me sentia constrangida, sentimento que foi piorando com o passar dos dias. Depois desse episódio, falamos novamente sobre questões objetivas do nosso trabalho, no meio dessas conversas, ele me mandou “saudades”, eu ignorei. Dias depois, vendo que não estava muito aberta ao diálogo, me mandou um vídeo com sua família, como quem tem a intenção premeditada de amenizar qualquer coisa que eu estivesse pensando em demonstrar que ele é “só meu amigo”. Com o passar das semanas, claramente fui percebendo mais o meu desconforto com suas atitudes e me distanciando cada vez mais ao ponto de conseguir criar coragem para tocar novamente no assunto, dessa vez, com alguém que fazia parte do nosso grupo e essa pessoa me fez perceber que fui vítima de assédio e que aquilo não poderia continuar acontecendo. Ele precisava ser interrompido.
Pensei um milhão de vezes antes de prosseguir com minha denúncia, porque tinha medo das consequências, e inclusive temendo por ele, o que a possibilidade de queda significaria pra ele — o que alguém extremamente vaidoso e compelido a atuar pensando sempre no benefício próprio faria ao cair do alto? — e o que ele seria capaz também de fazer com tamanha rejeição? Meus pensamentos foram mudando, após muito refletir e debater, algo ficou claro: isso é inaceitável.
Veja, eu sou uma mulher militante. A defesa dos direitos da mulher não é mera pauta, ela tem que ser colocada em prática, mas para isso acontecer, as mulheres têm que dizer. Não faz sentido eu lutar pela voz de outras pessoas se eu mesma me silencio diante de algo completamente ultrajante e violento como o que ocorreu. Pensei mais outro milhão de vezes antes de escrever e postar esta história, depois de meses e sem qualquer intenção de provocar desconfiança nas pessoas sobre quem é o assediador, faço porque precisava declarar a minha narrativa que, com o passar do tempo, ficou esquecida por algumas pessoas que souberam o que aconteceu e eu me sinto hoje silenciada, porque se eu quiser permanecer onde estou, vou ter que conviver com meu assediador. Quanto tempo vai demorar para as pessoas entenderem que esse tipo de situação nos causa um trauma? Que também age como um gatilho para rememorar outros traumas e fragilidades? Que é impossível conviver com o seu assediador, que a gente não esquece e a superação só se dá quando essa pessoa deixa de existir nas nossas vidas e, com o tempo, vai deixando de existir nos nossos pensamentos mais sombrios?
Não joguei a merda no ventilador, por temer diversas coisas, inclusive para não expor nem ele, nem a mim e nem o grupo que fazemos parte. Mas, venho aqui dizer que, ainda que com meias palavras, eu não quero que aconteça o mesmo com quem estiver lendo isso, seja mulher e até homem — porque o assédio sexual com homens é tão naturalizado? — e que se perceba que temos nosso próprio tempo para digerir as coisas, mas que quando dermos conta disso, falemos, pois definitivamente não estamos sozinhas.
Mesmo num momento de fragilidade, foi crescendo aqui dentro, desse corpo repleto de subjetividades, algo concretamente objetivo: de que lutar faz parte de mim, seja ocupando o espaço que estiver, me trazendo uma força imensa e revolucionária como deve ser. Meu inimigo tem nome, e ele é mais um desses homens que se sentem muito confortáveis na posição de poder que estão ou acham que estão, porém, sempre vislumbrando mais e passando por cima do que estiver na frente para conquistar o que desejam. Minha voz é grave não à toa, é porque quando resolvo gritar, soa alto e ecoa.
Ainda que o desfecho da minha história — uma entre tantas na minha vida e na vida de outras — não tenha tido uma conclusão boa, percebo que tenho que continuar lutando.
Desejo que as nossas vozes encontrem ecos, que nossa revolta seja revertida em luta coletiva, que conforme cresça a necessidade de partir para o enfrentamento possamos também florescer e para que a gente endureça sem nunca perder a ternura.
Agradeço a quem leu até aqui. Agradeço imensamente às amigas e amigos, que estiveram ao meu lado quando estava lidando com tudo isso sozinha e não largaram as minhas mãos em nenhum momento de todo esse atordoante processo, que perdura, mas que decido hoje que não mais me fará abaixar a cabeça.