Um prato que se divide é sempre um prato quente

Angélica Yassue
3 min readDec 11, 2018

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Dias desses decidi preparar húmus, uma receita que tomei gosto em fazer em casa assim que passei a flertar com o veganismo. É preciso cuidado ao prepará-la: deixar de molho na água, cozinhar no tempo certo, acertar as quantidades de complementos e no sabor característico. É o resultado da responsabilidade que se tem ao cozinhar um prato típico. O problema é que nunca acerto muito bem nenhuma dessas condições. Cozinhar pra mim é uma atividade antiga, que faço desde os 8 anos de idade, portanto, não tenho muito apego a regras e, pela correria do dia-a-dia (e preguiça), acabo fazendo quase tudo “a olho”.

Desta vez, tentei fazer diferente e segui uma receita, mas, como esperado, meu húmus rendeu muito, suficiente para sobrar. Lembro de quando morava sozinha e convidava amigos para dividir o húmus, para não estragar — como às vezes acontecia, e da última vez que fiz não consegui levar na casa de uma amiga e, de novo, acabou sobrando e fiquei mais de uma semana comendo o mesmo húmus.

Eu odeio desperdícios, em geral, mas, especialmente com comida. Acho que comida é algo de extrema importância, e nem é só porquê se ouve, quando criança, para comer tudo no prato “porque tem gente passando fome no mundo”, mas porque, realmente, alimento é uma questão de sobrevivência, que também alicerça e envolve poder, guerras e fome. E fome mata.

Observo, de longe, a guerra no campo, em que líderes de movimentos sociais, como o MST, estão morrendo, acampamentos estão sendo invadidos e a esperança se reduzindo a pó. Logo essas pessoas que tanto têm nos ensinado sobre os benefícios do orgânico, logo essas pessoas que, diferente de quem tem casa e água quente à disposição, são as que nunca pararam de lutar. Isso realmente é resistência. E imagina o quanto isso cansa. Assim como imagino que desistir não é uma possibilidade.

Ter o privilégio de escolher lutar e, mais do que isso, qual luta ou “causa” abraçar é algo confortável. Ter comida no prato também. Não ter que conviver com uma ameaça constante de despejo, invasão e de morte, mais ainda.

Eu não sei o que é viver assim, mas tenho tentado entender. Não por curiosidade, mas porque quero usar dos meus privilégios para somar nessas lutas. Não creio que seja para saciar algo que falta em mim, ou aliviar uma culpa social-moral e muito menos sob uma visão filantropa, de caridade. Eu quero aprender. Quero ajudar a denunciar. Quero estar. Quero somar. Quero que a minha vida não seja só sobrevivência pautada sob uma ótica liberal e individual.

Percebo também que quanto mais eu aprendo e me envolvo, mais eu vejo individualismo em tudo e me enojo quando noto isso em meu comportamento. Tenho tentado melhorar e sem buscar aprovação em outrem. Mas, quando a gente realmente consegue separar o indivíduo do social? Não sei, mas enquanto eu não entendo, prefiro continuar fazendo.

Ontem, durante um ato, uma companheira de militância comentava que a gente não tem que querer salvar o mundo, a gente tem que fazer o que tiver ao nosso alcance para atuar pelo outro. O outro é também gente que não tem direito à moradia, que nem sempre tem comida na mesa e que tem sofrido as formas mais sujas de dominação do poder público e de alienação da população, de classes dominantes principalmente. Vivem em ocupação, mas são tratados como moradores de rua, esses que são invisíveis aos olhos da cidade, que não deveriam existir para muita gente, que são números de estatística das notícias e que são sujeira a ser removida pela política higienista.

Concordei com ela. A gente não tem que querer ser herói das pessoas. A gente tem que treinar o olhar humano, enxergar o outro como uma pessoa e, com isso, perceber que ele deveria ter os mesmos direitos e acessos que a gente, que deveria ter pratos quentes em todas as refeições.

Felizmente, comida também envolve confraternização. Reunir pessoas em torno da mesa, ou da cozinha, é algo que nutre, literalmente. Hoje não aprendo só a melhorar a receita do húmus, como também a dividi-la não apenas por receio de sobrar e estragar, mas por querer promover um pouco do que aprendi com o outro, que também vai me ensinar como melhorar essa e outras receitas.

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Angélica Yassue

comunicadora social, militante das liberdades emancipadoras, com muitas ideias apaixonadas para mudar o mundo e a si mesma. aqui vc encontra crônicas e emoções.