Vulnerabilidades

Angélica Yassue
5 min readAug 1, 2022

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Carrego um fardo sobre os meus ombros há meses. Tenho algumas ideias de como removê-lo, tirando-o com cuidado, como a retirada do curativo em que o sangue está seco e você puxa devagarzinho para não reabrir o machucado que acabara de começar a cicatrizar. Ou como quando damos um abraço apertado em alguém que você não quer soltar, mas precisa e faz, lentamente desencostando seus corpos e trocando cheiros, tentando aproveitar ao máximo aquela pequena fração de segundos.

Quero tirá-lo de mim com cautela, mas para que ele nunca mais volte a me incomodar. Para que não me persiga, não insista em continuar a me atormentar, que não me mande mais mensagens noturnas que adoecem o sono, que não tente mais me fazer indesejadas ligações de número desconhecido, que não aperte a campainha sem ser convidado. Para que dê espaço para alongamentos e massagens, beijos e brisas, ou o bater de marolas antes de um mergulho. Para que eu resolva as coisas dentro de uma ideia que me gere tempo para aproveitar a vida ao lado da pessoa que mais me importa nesse mundo: minha mãe.

Não sei quantos anos lhe restam, nos restam, juntas. Não sei se a medicina é tão avançada assim no sistema público de saúde de um país periférico. Não sei se posso apenas confiar que ela será bem atendida, que seu tratamento dará certo e que outras questões de saúde física e emocional se tornarão mais fortes. Ter quase perdido ela tantas vezes, ter cuidado e e ser cuidada por ela, ter aguardado nervosamente todas as cirurgias que ela passou, ter enfrentado o medo de sua não-existência me deixou incontáveis marcas, que agora não estou sabendo lidar mais com tudo isso. Não sei se estou sendo pessimista ou realista, ou se estou tão preocupada e acostumada a receber notícias ruins, que já não sei mais o que é ser positiva.

“É preciso acreditar” me dizem. Minha irmã, as/os amigas/os, os parentes, a pomba gira, a minha própria mente. E acredito, porque quero acreditar. Mas, é urgente que a vida precisa melhorar, assim como a minha habilidade em resolver os problemas e garantir que ela possa descansar, ter uma rotina saudável e tranquila, pertinho do mar, como sempre foi seu sonho, viver e não mais sobreviver, ainda que sob a tutela de um diagnóstico fatal e um prognóstico incerto.

Penso com o meu coração, todos os dias, em todas as alegrias que eu poderia lhe oferecer. Visitar nossos velhos amigos no Chile? Uma viagem para a Ásia para poder se conectar com nossas ancestralidades? Um/a neta/o para que eu tenha alguma esperança de sentir de outro ser um pouco do amor que sinto por ela e para que ela possa conhecer e participar da vida desta criança? E que esta criança conte para todo mundo com orgulho sobre o quanto a avó dela é um ser humano incrível? Ou eu apenas posso tentar resolver nossos problemas e garantir um pouco de paz para ela depois de anos de caos e seis meses catastróficos?

Não tenho outra alternativa quanto à última questão. Já as questões materiais só podem acontecer depois de resolvê-la, e a de maternidade, não tem jeito senão esperar e entender se é isso mesmo que quero. Preciso resolver e faço isso todos os dias. Todo dia estou matando um leão, suprimindo meus planos, enforcando meus neurônios em lidar com todo esse estresse e trabalhar longas horas todos os dias. 4 trabalhos: o meu, o seu, o de casa e o de cuidadora de idosos hábeis e teimosos. Tem o de militância que continuo porque preciso e atualmente faço mais por mim do que pelo coletivo, porque necessito me sentir minimamente ativa em algo que não envolva fazer por obrigação ou por cuidado direto a outra pessoa, que me faça sair do sofrimento diário e delírios ensimesmados, que me faça sentir viva e inteira e que me traga a certeza de que estou lutando por algo maior do que a minha própria existência. Faço por responsabilidade, faço por amor, faço por necessidade. Mas, estou exausta. Minhas emoções estão péssimas, muitos fios de cabelo no ralo ou espalhados pela casa, crises de choro em hospitais, no trabalho, na madrugada e até durante festas quando bate aquele desespero inconveniente e de repente.

Nunca vou assumir tudo isso pra ela, mas ela sabe. Ela me olha e sabe. Ela não chora. Então, não choro na sua frente. Ela é durona e sempre tentou me ensinar, ainda que não verbalmente, que chorar é sinal de fraqueza ou que a irritava quando eu era criança porque chorava por qualquer coisa, a toda hora, inclusive nas minhas incansáveis manhas. Eu não aprendi do seu jeito, mas sozinha, que não tem problema em deixar escorrer aquilo que nos incomoda e entristece, e derramo oceanos até quando estou emocionada com algo que me deixa feliz ou assistindo cenas que me tocam, ou vendo pessoas fazendo coisas admiráveis, ou quando de repente me percebo tendo um lampejo de algo que tentei por muito tempo entender e a resposta não aparecia. Lágrimas pós catarse, que tesão.

Minha mente é ágil, como a dela. Tão rápida que me perco em meio a tantos pensamentos. Silenciá-los nunca foi possível, mas daí aprendi a meditar para controlar a ansiedade, a me entorpecer quando nada mais funciona, a escrever, dispensando licenças poéticas, quando preciso organizar meus sentimentos e compartilhá-los a fim de chegarem a outros olhos e aquecerem corações. E a me respeitar quando é evidente que a racionalidade excessiva está me machucando. Então, apenas paro tudo o que estou fazendo, fecho os olhos e dou um longo e demorado respiro. Às vezes funciona, na maioria das vezes, não. Mas, eu continuo fazendo até melhorar.

Ela sempre foi uma pessoa que fala muito, que chega nos lugares e encanta as pessoas com a sua simpatia e voz aguda. Extrovertida, chamando atenção por onde passa. Sorrateira, lendo seus livros, fazendo suas preces, assistindo suas séries estranhas de pessoas desaparecidas e ignorando todo o resto ao redor. Sempre admirei sua diversidade e eu sou tão parecida as vezes e tão diferente as vezes. Mas a vejo muito em mim. Mesmo com a minha voz grave, minha simpatia seletiva, meu humor oscilante, minha rebeldia, meu apreço pela coletividade e minhas perigosas ideias revolucionárias. Nossa brabeza é igual, demora pra aparecer, mas quando surge é como um cuspir fogo de um dragão — violento, certeiro e incendeia tudo e a todos — nosso ódio por injustiças, nosso coração imenso e nossa capacidade de nos doar e nosso erro de esquecermos de nós mesmas para cuidar de outras pessoas.

Nossa relação é de amizade, genuína quanto, cheia de altos e baixos como. Mãe e filha. Conectadas através do útero, do sangue, do amor, das expectativas, dos sonhos, dos medos e da esperança.

Estou contigo e me doando por completo, ainda que isso me deixe completamente vulnerável. Mas, estou com você e por você, para sempre. ❤

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Angélica Yassue

comunicadora social, militante das liberdades emancipadoras, com muitas ideias apaixonadas para mudar o mundo e a si mesma. aqui vc encontra crônicas e emoções.